O Elefante Gilberto: Processo de criação de livro ilustrado
- Júlio Castro
- 17 de out.
- 10 min de leitura

O Elefante Gilberto, escrito por Sónia Godinho e publicado pela Alfarroba agora está disponível na segunda edição!
A história trata sobre Gilberto, um elefante cinza que se sente desajustado em sua manada e parte em viagem pelo mundo, vendo diferentes cores e formas de vida.
Compartilho como foi meu processo de ilustração deste livro. Dos primeiros esboços, storyboard aos layouts finais, passando pelas revisões até as finalizações. É uma viagem com bastantes caminhos paralelos e inesperados.
Ficarei contente em ler seus comentários!
Parte Um: Leitura do texto, interpretação do clima, primeiras ideias e esboços
Logo de cara me interessei pela trajetória do personagem, inquieto e curioso, sente não se encaixar onde vive e se pergunta porque não se pode fazer/ ser diferente. Uma história de alguém que não encontra seu grupo ou que está descobrindo a si próprio. Por outro lado, há um humor inerente em ver um elefante em situações incomuns, como logo no início, quando ele viaja à Espanha e participa da festa tradicional La Tomatina onde encontra o vermelho, cor que passa a pertence-lo a partir de então. Assim ocorrem, sucessivamente, viagens, encontros com personagens e adições de cores que fazem Gilberto chegar ao final muito diferente do início.
No início não me preocupei em definir nada, é uma fase aberta. Preocupo-me em registrar as ideias, surgem elementos que podem complementar outros mais tarde. Conforme eu imagino as cenas, eu experimento as composições vistas de ângulos diferentes.


Neste projeto a editora contava com algumas ideias de cenas esboçadas brevemente e estavam bastante abertos à qualquer mudança. Algumas destas eu tomei como referência e em outras cenas preferi criar outras estruturas.


Parte Dois: Storyboard, paginação e primeiro envio
A partir dos esboços pequenos à lápis fui recortando os elementos e compondo as cenas, de maneira inacabada porque a intenção era enviar a editora e receber seus comentários sobre, irmos conversando e definindo.
Quando crio o storyboard, desde o início, tenho em mente a importância de deixar suficientes espaços para o texto e a posição dos elementos em relação à dobra da página, já que detalhes ou elementos importantes podem ser "engolidos", no centro, com a encadernação.
Por exemplo, na cena 5 deixei o tanque com o suco de laranja na página da direita, separado do elefante, para quando o leitor vire a página, tenha também a impressão de que o tanque está virando. Por momentos durante o projeto me ocorrem pequenas brincadeiras e piscadelas como esta que envolvem a fisicalidade do livro.

Na cena 9 eu pensei fazer o elefante maior, ocupando mais espaço na página, mas depois concluí que a ideia principal era transmitir a sensação de calma, tranquilidade que está associada com o verde, logo, esta cor deveria prevalecer. Para isso, optei por deixar a cena menos literal: nada proporcional em termos de tamanho, as árvores servem de almofada e o elefante se deita para trás como se estivesse numa cama gigante, muito relaxado e confortável.
Neste projeto dei especial atenção às cores, já que eram importantes na história. Cuidei para que houvesse uma transição na seguinte forma: antes de cada página dupla com a cor destacada, esta era introduzida na página direita anterior.

Bem, assim fui definindo os elementos e atores que apareceriam na história e enviei a editora.
Depois dessa conversação e alguns poucos ajustes eu tinha todos os esboços prontos, agora o próximo passo foi trabalhar nas artes finais.

Parte Três: Arte final, variações e improvisos
Quênia - Início e Final
Muitas ideias e definições surgem após o storyboard, apesar da cena estar montada com os elementos meio dispostos, ainda há espaço para "improvisos", como relato abaixo.
Na primeira cena o personagem principal parte em viagem e ao final retorna à sua "casa" no Quênia. A editora gostou da ideia de mostrar o mesmo cenário em ambos momentos, por conta disso, achei importante ressaltar a passagem do tempo de alguma forma, marcar o antes/ depois.
Nestes dois momentos enfoquei nos personagens e suas atitudes diante dos sonhos de Gilberto em ser colorido.

Com isso em mente, procurei algumas referências de personagens elefantes, que pudessem expressar diferentes emoções e imaginei um trio de elefantes adultos com personalidades e reações diferentes diante da empolgação e curiosidade de Gilberto pelas cores.

No início da história: as expressões de impaciência, desdém mas também curiosidade.
E ao final, espanto, surpresa, e deslumbramento. Alguns o admiram, enquanto outros, chocados, continuam achando que só existe uma maneira "correta" de viver.
Espanha - La Tomatina
Nas seguintes páginas iriamos passar pela Espanha, durante a festa La Tomatina. Nunca estive lá durante o evento então procurei referências em fotos e vídeos para sentir como era o clima da festa. O que também aconteceu na maioria das cenas.
Os significados que o vermelho carrega para o público ocidental são os de excitação, paixões mas também pode remeter à violência. Tomei cuidado para que ficasse claro que os personagens estavam se divertindo e não brigando, o que pode ser visto neste desenho e primeira pintura da cena, que depois finalizei digitalmente.
Aqui eu representei de formas múltiplas, o que Sophie Van der Linden define como "instante movimento": um momento representativo da ação completa. Uma pessoa se abaixa pega um tomate e lança. Se pode representar o momento antes do lançamento com o braço dobrado, o impulso para frente com o tomate, se abaixando novamente, etc. É como a foto de uma ação.

Portugal - Suco de laranja
O seguinte destino foi em Portugal, primeiro em meio aos laranjais e depois Lisboa.
Queria destacar a textura das laranjas, transmitir algo do brilho e da acidez, fazer jus à fruta que salta literalmente aos olhos quando você as descasca.
Inicialmente risquei lápis e giz seco sobre a pintura em aquarela, não gostei como ficou e resolvi fazer em uma folha separada, juntando tudo depois.
A textura das árvores eu montei a partir de uma pintura que eu tinha feito há uns dois anos atrás de uma praia bastante nublada. Bastante alto-astral, como podem ver abaixo. Colori no photoshop e gostei bastante.


Numa folha de ofício comum, fiz as laranjas e depois posicionei como queria, montando uma torta em camadas.


De forma semelhante fiz a seguinte página dupla, mas dessa vez usei também acrílico para as cascas de laranja. Outra vez ignorei as proporções, queria mostrar as texturas que gostei muito e preferi fazer laranjas gigantes. Acredito que meus trabalhos com estampas tenham me influenciado, o fundo dessa cena resultou mais parecido a um padrão de estamparia: plano e sem perspectiva.
Página dupla final:

Depois de ganhar cada cor, Gilberto sempre encontra outro personagem que o guia a seguinte cor e lugar. Dessa vez, em Portugal, decidi que esse encontro aconteceria na Torre de Belém. Pensando que o público principal seria português, fui mais específico no desenho deste lugar famoso.

Outra vez segui o método por camadas: linhas, pintura, texturas e elementos do fundo feitos em folhas e camadas diferentes. Há uns 2 anos eu trabalhei em um livro sobre umas ovelhas que viajam em um barco no mar e gostei muito do resultado usando esse método. Nessa época eu estava numa oficina de gravura e isso teve grande influência nessa ideia, já que estava vendo como faziam as gravuras coloridas através de uma matriz separada por cada cor, similar as camadas do Photoshop.

Austrália - Deserto amarelo
Gilberto é um elefante viajante e também brincalhão. Assim que chega ao deserto na Austrália, ele brinca e rola na areia, então, o que imaginei foram a reações dos animais daquele lugar, com tamanho visitante levantando tanta areia. Procurei animais endêmicos dessa zona que me parecessem bons personagens, que fossem divertidos.
Diabo-espinhoso (Moloch horridus) Fofinho e ao mesmo tempo, com cara de que ficou irritado por algo.

Emu (Dromaius novaehollandiae), a maior ave da Austrália e os Pináculos no deserto da Austrália Ocidental

Eu gosto muito de animação, estudei isto na universidade dentro do curso de Design e pretendo trabalhar em projetos pessoais quando possível. Quando era criança assistia muito Cartoon Network quando estava de férias na minha avó, em Pelotas, e esta parte do livro me fez lembrar, sobretudo, do Coyote correndo atrás do Papa-léguas (Looney Tunes) levantando muita areia e fazendo muitas caretas. Esse cenários eram incríveis, na época não entendia porque gostava, porque mas hoje vejo o quão estilizados são e adoro isso.
Papa-léguas e Coyote e os cenários: https://tralfaz.blogspot.com/2021/04/scrambled-aches-backgrounds.html
Essas animações não foram algo que eu tivesse pensado nem buscado referenciar no momento que desenhava, mas agora depois de um tempo e refletindo, vejo uma ligação forte com esse pássaro, o deserto e esses elementos. Muitas vezes as referências se manifestam inconscientemente, eu costumo pensar que é similar a cozinhar uma sopa constantemente e por anos: vou adicionando ingredientes à panela da minha cabeça e por momentos me sirvo conchas desse caldo e sinto ingredientes que já nem lembro quando entraram nessa mistura. Também meu paladar vai mudando e certas coisas já não descem mais.
Detalhes da ilustração finalizada:
Imaginei um canguru bastante agitado, já que eles não caminham, mas saltam. Ele queria ajudar, só parecia muito nervoso e apressado. Então para criar a ilusão do movimento inquieto, deixei as linhas do primeiro esboço inalteradas, um traçado rápido e agitado. Em seguida comentarei mais sobre movimento na imagem estática.
Brasil - Amazônia
Dessa vez eu queria criar uma textura diferente, mais densa, pensei em uma floresta densa e usei tinta acrílica, mais espessa. Não estive na Amazônia, então fui para as memórias das vezes que fiz trilhas e acabei ao final do dia com as luzes já amareladas. O sol passando entre os galhos, a calmaria de escutar o vento, os pássaros e água correndo ao longe.
Pintei o fundo e depois coloquei o elefante, que pintei em outra folha, e alguns detalhes como a espuma e as faixas de cores.

Aqui houve uma substituição de atores, ele não se sentiu bem posando de cabeça para baixo e tivemos que trocar.
Havaí - Salto no azul do mar
Eu queria criar a sensação do personagem saltando no mar, a ilusão de movimento numa imagem estática, que pode ser feita de várias maneiras.
Bom, no caso do Gilberto o resultado foi este. Essa cena é uma combinação de sucessão simultânea, que segundo Sophie Van der Linden, consiste em recriar e juntar vários fragmentos da ação que ocorreu em uma só imagem e efeito de vaporosidade no início do salto. Abaixo eu mostro outros exemplos em que usei isto.

Neste livro que ilustrei anteriormente, eu usei as linhas de movimento para marcar a trajetória do cachorro e a direção das cabras. Também se apresenta uma sucessão simultânea: as progressivas posições do cachorro, que da a volta no rebanho das cabras.

Do mesmo modo, neste livro sobre futebol, além das linhas, eu aplico na bola o efeito de vaporosidade (um nome estranho para algo que você já deve ter visto muitas vezes). Ambos comuns em quadrinhos/ mangas por exemplo.
Linhas de movimento e Efeito de vaporosidade na bola
Na fotografia, através da técnica de múltipla exposição também se cria essa ilusão de movimento e sucessão.
China - Ameixa roxa
Eu experimentei fazer a pintura no software Rebelle, uma ferramenta meio nova para mim e gostei do resultado.
O Rebelle (patrocina-me hehe) é o melhor simulador de aquarela e vários tipos de tinta que conheço, realmente o processo é parecido: não é uma aplicação/ imitação da textura da folha que resulta numa aparência de aquarela da pintura final. Nesse caso o processo da pintura em sim é o diferencial pois simula a física da água, há mais controle porque se pode pausar o tempo e a caída da água, voltar uma etapa, apagar, etc. Tem suas adaptações, para quem gosta vale a pena experimentar.
Toda essa parte da história foi feita com Rebelle + Photoshop, gostei muito do efeito de pinceladas. A minha ideia foi referenciar o Sumi-ê, uma técnica que surgiu na China na dinastia Tang (618-907) e depois foi pro Japão.
Esquerda: Pintura de Liang Kai (c. 1140 - c. 1210) e a direita outra pintura que não encontrei a autoria.
Outra referência foi um ilustrador chinês Jasper Shaw, que faz alusão à técnica milenar em muitos trabalhos.

Ilustração de Jasper Shaw
Para essa paisagem e essa construção, tomei como referência um parque da China, na montanha Meihua. Quando procurava sobre as ameixas e a China, acabei encontrando esse lugar, também chamado de Colina da Flor de Ameixeira. É uma das chamadas Áreas Cênicas nacionais, similar a uma reserva ou parque nacional.




Lilás - Volta ao Quênia
Essa parte teve um desafio diferente, pela questão da cor lilás resultar muito diferente no sistema de impressão CMYK, do RGB que vemos nas telas. Consegui contornar um pouco isso, pois tinha ficado com a impressão da cor muito apagada inicialmente, além disso o magenta tinha que se diferenciar do roxo
CMYK (inicial) e RGB
Pintei a montanha, as flores, os "perfumes" e o elefante em folhas camadas separadas. Os cheiros no Rebelle e os demais em aquarela, acrílico e lápis.

Na última página eu pintei o espirro/ arco-íris em separado e depois fiz uma colagem, alterei o cenário do início o necessário para mostrar a passagem do tempo e coloquei os elefantes para atuar.
A ilustração do início e as alterações para a última página
Bem, depois de todo o caminho percorrido faltava "apenas" a capa. Fiz alguns esboços de ideias diferentes e enviei à Andreia, a editora da Alfarroba.

Trocamos alguns e-mails e nos pareceu que a segunda opção era a melhor para esse livro. Desenhei ela digitalmente, adicionei os elementos que imaginei que ele levaria ao longo da história, um elefante mochileiro.

Cheguei a cogitar fazer a silhueta da paisagem na frente da capa, assim como na contra-capa.

Depois sugeri uma textura para o fundo branco, para não ficar um "branco-frigorífico frio", uma boa definição, que achei engraçada, da Andreia.

Pintei as pegadas, o elefante e as letras algumas vezes. Montei tudo, alterando algumas cores. Foram várias tentativas porque queria que a letra saísse sem retoque, para mostrar a textura do pincel.
Algo que já ouvi de vários desenhistas/ artistas é que praticar muitas vezes, ensaiar, na execução faz parecer que foi feito em segundos ou que é fácil.
Há muito tempo venho pensando em escrever esse post, registrar e mostrar meu processo para alguns que estejam curiosos. Sempre vou aprendendo de outros e espero que também sirva para alguém, nos outros projetos fiz coisas diferentes que planejo ir postando com o tempo. Em paralelo também penso em postar sobre técnicas e elementos da própria linguagem do livro ilustrado, um tema que gosto muito.
Se quiserem acompanhar no Instagram, a escritora Sónia Godinho tem postado sobre os eventos, divulgações e viagens que ela tem feito com o Gilberto. Está sendo lindo ver a recepção com o público, mesmo que a distância. Sou grato à Sónia por escrever essa bonita história que me inspirou e ainda mais, pela confiança da editora Alfarroba, Andreia em especial que trabalhamos em alguns livros.
Agradeço a todos que leram
Saudações,
Júlio

































































































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